Como é viajar do ponto de vista da criança?
Torre deRoche expõe num relato emocionante as memórias e sensações de suas viagens em família desde que era uma bebê. Durante um período de carreira bem sucedida, seu pai costumava levar as seis filhas à bordo. Loucura, não?
Quando criança, as experiências sensoriais são muito marcantes. É lindo ouvir como detalhes tão singelos ficaram na memória dela até hoje. Sinal de que o que a gente vivencia numa viagem não passa despercebido pelas crianças pequenas.
Eu não vejo a hora de viajar com o Luc novamente, mas ainda tenho histórias de viagens passadas pra contar então, aguardem!
Reproduzo abaixo o artigo traduzido na íntegra…
UMA RAZÃO PARA SE VIAJAR COM CRIANÇAS
Por Torre DeRoche
Alguns pais dizem que viajar com crianças não vale a pena. “Eles não vão se lembrar”, dizem. “É um desperdício de dinheiro. É melhor esperar até que eles estejam mais velhos.” Isso é verdade?
Aqui está a minha primeira foto de passaporte:
Embora eu tenha crescido na Austrália, meus pais são americanos e nós viajávamos para visitar a família a cada poucos anos. De alguma forma, meus pais conseguiram viajar não com duas, nem quatro, mas seis crianças!
Minha avó viveu em Mazatlan, México, ficávamos em sua casa durante semanas, um mês …ou mais? Não me lembro dos prazos: quando você é criança todas as experiências parecem infinitas, é por isso que a alegria é tão deliciosa e a miséria tão insuportavelmente dolorosa. Isso vai ser para sempre?
Lembro-me do calor opressivo que nos bateu na saída do avião e da mangueira que se elevava sobre a casa da vó, deixando cair manga doce do tamanho da minha cabeça. Lembro-me de brincar com os pés descalços na rua com as crianças de língua espanhola, que tinham cabelos escuros, pele morena e olhos castanhos, curiosos por nossa pele clara com olhos arregalados.
No abismo escuro da minha caixa toráxica vive a memória traumática de ter sido mordida no rosto pelo pastor alemão da minha avó, com o nome de Killer, e ver o sangue escorrendo pelo meu rosto e na minha camisa. Eu estava nervosa, não por causa da dor, mas porque todos os adultos pareciam estranhamente apavorados. Este foi sério. Estávamos em 1984, no México.
Eu ainda posso ouvir suas conversas sussurradas: “Deveríamos nos preocupar com a raiva…pode ficar infectado…por pouco não atingiu o olho e cegou-a…ela estava acariciando-o enquanto ele estava comendo, é por isso… mamãe devia se livrar desse cachorro estúpido.”
Isso vai ficar para sempre? Um amigável médico me ensinou as palavras “pontos de borboleta” e tornou tudo melhor, e para manter a água da torneira suja fora da minha ferida, mamãe me banhava em um balde (eu era pequena o suficiente para caber em um balde).
Alguns anos mais tarde na década de 80, quando a carreira de escritor do meu pai atingiu seu auge, voamos para Bali. Eu tinha seis anos.
Naquele voo, uma aeromoça indonésia tinha o rosto mais bonito que eu já havia visto. Nenhuma outra face me surpreendeu mais que a dela. Meu couro cabeludo ainda guarda a dor formigante das mãos balinesas com dedos ásperos e rápidos fazendo tranças nos fios de meu cabelo dourado.
Meus pés não esqueceram a lama podre esmagada entre os meus dedos enquanto caminhávamos com os pés descalços nos mercados de Bali. (Papai não estava de acordo com o conceito de sapatos e só usava quando era legalmente obrigado a fazê-lo. Calçados representavam dois males: autoridade e conformidade.)
(Língua também é um bom dispositivo para negar a autoridade e conformidade, como eu descobri.)
No rolo de filme da minha memória, todas essas experiências, de alguma forma, convergiram em um momento perfeito que aconteceu numa noite em um restaurante com telhado de palha ao ar livre. Um ambiente aconchegante, com a brisa das palmas carregadas de energia chicoteado nosso cabelo. Tudo que eu lembro daquela noite é a brisa, as estrelas, a tranquilidade de estar com a minha família, e o gosto do meu prato: espetos de frango com um molho típico balinês. Nenhum outro prato me surpreendeu tanto como este.
Paramos de viajar em 1988, quando a recessão atingiu a Austrália e a carreira do meu pai. Eu tinha exatamente oito anos e essa foi toda a experiência que tive ao viajar como uma criança.
* * *
Eu estou escrevendo isso em um avião que está indo para a Indonésia, e depois vou Bornéu e Índia. Viajar ocupa grande parte da minha vida agora, que eu financio através do meu trabalho freelance como escritora e designer.
Já se passaram 28 anos desde que fui a Bali. As coisas estão muito diferentes agora, obviamente, e não apenas em Bali. Meu cabelo ficou marrom, meu pai faleceu de câncer, e eu uso sapatos por razões de higiene (porque particularmente não gosto de ter solas enegrecidas pela sujeira).
Mas há uma coisa que permanece exatamente a mesma …
Nas células que compõem o corpo adulto vive uma selvagem, elétrica excitação de ir para um destino que lhe é estranho e assustador, emocionante e novo. É uma paixão pela aventura, curiosidade pelo novo, uma abertura para o desconhecido que é intrínseca para mim.
Onde quer que eu vá neste mundo, levo comigo as lembranças sensoriais de todas as viagens anteriores, como naquela perfeita noite em Bali com aquele sentimento de alegria que parecia durar para sempre. Coleciono essas impressões e mantenho-as dentro de mim como um pequeno fogo precioso que vive no meu plexo solar.
Eu cresci. Meu pai morreu. Um monte de coisas mudou. Mas o fogo nunca vai sair.
É a minha essência.
Um monte de gente acha que você não deve levar as crianças na viagem. É um desperdício de dinheiro, essas pessoas dizem. As crianças não vão se lembrar, não vão processá-la. As experiências serão pouco apreciadas.
Discordo.
Artigo original: http://www.fearfuladventurer.com/archives/10519