(Este artigo foi publicado originalmente na Revista Planeta em setembro de 2009)
Em 2001, pouco antes das torres gêmeas virem abaixo, uma enfermeira franzina desembarcava em Yaoundé, capital dos Camarões, na África, para mais uma missão espinhosa: erguer, a partir do nada, uma maternidade. Já havia passado por outras empreitadas complicadas, como recuperar uma escola semidestruída em Mato Grosso, construir um asilo na periferia de Buenos Aires e atuar numa maternidade em Israel.
Para Rosa Thereza Barbiere, a Irmã Davina, sempre foi assim: ao receber um chamado ela parte, levanta recursos, constrói, põe pra funcionar e, quando está tudo funcionando, segue para a próxima missão. Desta vez, porém, a pobreza extrema, a falta de recursos e as dificuldades de relacionamento com os locais comporiam seu mais longo e árduo desafio.
Esta incansável freira católica de 67 anos confessa que teve medo. Em seus primeiros dias em Yaoundé, a caminho de uma missa, viu um ladrão ser queimado vivo na rua: um bando de pessoas o colocou dentro de uma coluna de pneus e ateou fogo. Ela quis interferir, mas as outras freiras que a acompanhavam a contiveram.
Fui visitá-la em 2009. Naquele ano, a maternidade e centro pediátrico Centre de Sante Catholique Mont Calvaire já atendia cerca de 300 pessoas por dia, entre mulheres em pré-natal e crianças, e realizava cerca de 4 partos por dia. As parteiras são comandadas pela Irmã Davina. Não são feitas cesarianas. Quando necessário, as parturientes são encaminhadas para um hospital maior, mas isso raramente acontece. Bebê fora da posição de nascimento não é problema. Com uma luva que cobre todo o braço, elas habilmente viram o bebê para a posição correta, numa manobra ensinada pela Irmã Davina.
Evitar uma cesariana significa economia para as mães, já que tem de arcar com os custos desse procedimento. Não há hospitais públicos gratuitos em Camarões, as pessoas pagam por tudo – consultas, exames e internações. No Centre Mont Calvaire apenas os exames e os partos são cobrados, é assim que o hospital se sustenta, sem ajuda do governo. Ainda assim faltam equipamentos indispensáveis como incubadora e aparelhos para exames laboratoriais.
Durante minha estadia de duas semanas, fui incumbida de uma importante tarefa: filmar o passo-a-passo de um pré-natal até o parto e produzir um vídeo, a ser exibido para as futuras mamães. A intenção era quebrar crenças arraigadas e amenizar o medo infundado que muitas mulheres tem desses procedimentos.
Eram quase 4 horas da manhã quando a Irmã Davina bateu na porta do meu quarto anunciando: “Rápido, são gêmeos”. Ao entrar na sala de parto, uma mocinha de 22 anos e expressão serena aguardava a próxima contração. Eram seus quarto e quinto filhos, e eu estava mais nervosa do que ela. Comecei a filmar, veio a contração, sua barriga pareceu ultrapassar os 4 mil metros de altura do Monte Camarões. Nada de anestesia, nada de episiotomia (corte do períneo pra facilitar a saída do bebê). O primeiro bebê veio muito rapidamente. Ao apontar a cabeça, sua face estava para baixo. Segurando a cabeça, a parteira girou-o com uma habilidade impressionante antes de retirá-lo completamente e entrega-lo aos cuidados da Irmã Davina. O segundo bebê deu mais trabalho pra sair, segundo a Irmã, o primeiro, mais forte, deve tê-lo comprimido, deixando-o “zonzo”. De início não chorou, deixando a equipe apreensiva. Que alívio ouvir seu chorinho minutos depois! Após a retirada da placenta e limpeza, a mãe se levantou, calçou seus chinelos e foi para o quarto andando. No Brasil, campeão vergonhoso de cesarianas desnecessárias, bastaria uma gravidez múltipla para a parturiente ser encaminhada automaticamente para o procedimento cirúrgico.
Há muitas mamães novinhas nos Camarões. Lá, as mulheres são proibidas de comprar ou exigir preservativos de seus parceiros. Certa vez, uma menina de 16 anos deu a luz às 2 da manhã. Às 8 da manhã ela deixou seu bebê com o pai, no hospital, e saiu para fazer prova na escola. As meninas costumam continuar os estudos durante a gravidez e, quando os bebês nascem, levam-nos para a escola com elas.
Quando perguntamos à Irmã Davina quais suas principais dificuldades no dia-a-dia, ela afirma que é no relacionamento com as pessoas,”é difícil encontrar alguém que seja sincero. Mesmo no trabalho, eles te deixam pra trás”. É assim com o motorista, seu funcionário mais próximo, que embolsa o troco das compras sempre que tem oportunidade. Com seus funcionários que furtam equipamentos médicos. É assim com as parteiras, que foram pegas realizando abortos clandestinos (e cobrando por isso) no horário do almoço, quando a Irmã se ausentava por cerca de 1 hora.
Essa malandragem, que aliás conhecemos muito bem, para eles é costume e forma de sobrevivência. Está enraizada em sua cultura, desde as camadas sociais mais baixas às mais elevadas, onde adquire outro nome e dimensão, e as crianças aprendem suas lições desde cedo. Dessa forma, sua atenção é constante e seu pulso firme, indispensável. “Ça ce qua?!” (“O que significa isso?!”, em francês) – é o apelido da Irmã Davina entre os funcionários, expressão que repete o tempo todo.
Ela não “desliga” nunca, pra onde vai carrega um celular em cada bolso, sempre no comando do hospital e da casa construída por ela nos fundos, onde vive com mais quatro irmãs e seis postulantes. É na criação de galinhas e patos, nos cuidados com o pomar e com o jardim que ela tem seus momentos de afago e tranquilidade. O gato Micho é seu companheiro de caminhada nas madrugadas em que tem que sair de casa para atender os chamados no hospital.
Meses atrás uma de suas enfermeiras pediu ajuda para um bebê, recém-nascido de sua vizinha, que morreu de complicações no parto. O bebê foi acolhido e as irmãs se revezaram para cuidar dele até que fosse adotado. Talvez não tenha tido a mesma sorte um bebê encontrado no lixo, perto do hospital. Levaram-no até a irmã, mas um delegado de polícia ficou sabendo e chamou a assistente social. Era justamente o que a Irmã queria evitar. As assistentes sociais costumam vender os bebês para o uso de seitas religiosas.
Avessa à debates políticos mas sem ingenuidade e sem pregação religiosa Irmã Davina cumpre o seu papel e dá o seu exemplo. Como se não bastasse toda a dedicação, recentemente os doces e frutas foram cortados da alimentação das freiras e a verba revertida em leite em pó para as crianças que vão lá se vacinar.
É a realidade nua e cruel. Quando perguntada sobre aposentadoria ela encerra: “aqui as pessoas precisam de mim, então aqui é o meu lugar, onde ficarei até morrer”.
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O vídeo a seguir mostra as etapas do pré-natal ao parto na maternidade Mont Calvaire:
Conheça o projeto Padrinho Educador, de iniciativa de Paula Scarpato, que tem o objetivo de financiar a educação de crianças nos Camarões.