Irlanda e o lado obscuro da religiosidade

28 de maio de 2015 / viagens

Um dos meus objetivos ao visitar a Irlanda ano passado, além de matar as saudades da filhota que estava por lá fazendo curso de inglês, foi produzir um artigo sobre as “Irmãs de Maria Madalena”, mulheres subjugadas e obrigadas a trabalhar em lavanderias comandadas por freiras católicas até o final do século passado, na Irlanda. Este assunto me tocou principalmente por que envolve a morte injustificada de muitos bebês ou a separação forçada de suas mães.

Tomei conhecimento delas ao assistir o filme “The Magdalene Sisters”, de 2002, e me surpreendi como uma situação como aquela perdurou até recentemente. Mas foi outro filme mais recente, Philomena, de 2013, que despertou em mim a vontade de me aprofundar nesse assunto e talvez chegar perto de entender como isso aconteceu. Ao ir mais a fundo descobri não serem só as mulheres as subjugadas, mas seus filhos. Não só em lavanderias, mas nos orfanatos e nas “casas de mães e bebês”. Não só pela Igreja Católica, mas pelo Estado.

Visitei um antigo convento, o Sean Ross Abbey, em Roscrea e, por e-mail, entrevistei uma criança que nasceu lá e foi enviada para os EUA, como muitas outras.

O artigo abaixo foi publicado na Revista Planeta em Nov/2014:

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SOB O ESTIGMA DE MARIA MADALENA

“A chocante notícia da descoberta dos esqueletos de quase 800 bebês numa fossa séptica no terreno onde funcionava um antigo convento católico na cidade de Tuam desenterrou um passado recente que a Irlanda não gosta de lembrar.”

Sean Ross Abbey, Roscrea, Tipperary

Sean Ross Abbey, Roscrea, Tipperary

Foram longos e sombrios 74 anos. Entre 1922 e 1996, em nome de um ideal católico-nacionalista de família “apropriada”, mais de 10 mil mulheres irlandesas, cujo comportamento era considerado imoral pelos padrões da sociedade à época, foram internadas a força e trabalharam gratuitamente nas “Lavanderias de Maria Madalena”, controladas e exploradas comercialmente por conventos católicos.

Enviadas pelas famílias ou por orfanatos, as moças não tinham autorização para sair do convento e eram obrigadas a trabalhar, sem qualquer tipo de remuneração, para expiar os pecados: ser mãe solteira, ser muito bonita ou muito feia, ter sido vítima de violação. Algumas eram detidas e enviadas para as Lavanderias através dos tribunais de pequenos delitos, como uma alternativa à pena de prisão, porém, sem data de término. Por vezes passavam fome e eram vítimas de castigos físicos, humilhações, violência física e mental. Grávidas solteiras eram encaminhadas previamente às chamadas Casas de Mãe e Bebê, sob a administração igualmente dura e punitiva das ordens religiosas. Diferente das Lavanderias, que eram um negócio lucrativo para os conventos, estas casas eram reguladas e financiadas pelo Estado. Lá, pelas mãos das freiras, as moças concebiam seus filhos de parto natural, sem alternativas em caso de complicações. Muitas mães e bebês morriam no parto. Depois, eram obrigadas a assinar um termo no qual concordavam colocar seus filhos para adoção quando completassem dois anos de idade. Muitas mulheres que perderam seus filhos nas Casas de Mãe e Bebê foram posteriormente enviadas para as Lavanderias para prosseguir em sua penitência, especialmente se suas famílias, motivadas pela por vergonha, não as quisessem de volta, ou se elas fossem consideradas “reincidentes”.

O livro “The Lost Child of Philomena Lee”, de Martin Sixsmith (2009), relata o drama real de uma dessas mães solteiras que perdeu seu filho para um casal de norte americanos, e narra sua busca, muitos anos depois. O livro foi posteriormente transformado no filme “Philomena” (2013), com a atriz Judi Dench no papel principal. Assim como o filho de Philomena, muitas crianças foram enviadas para os EUA – cerca de duas mil, entre a década de 1940 e 1970. Este êxodo de crianças foi sancionado pelo Estado, as adoções foram deliberadamente omitidas do Registro das Crianças Adotadas e isentas de supervisão.

Sean Ross Abbey

O Estado usou a Igreja para prestar um serviço social em seu nome.” (Conall Ó Fátharta – Repórter do Irish Examiner )

Voltemos aos 800 bebês mortos no convento em Tuam, sob os cuidados das irmãs Bon Secours. A alta taxa de mortalidade era uma constante em todas as Casas de Mãe e Bebê. Relatórios do governo mostram que a taxa de mortalidade entre as crianças “ilegítimas” chegou a ser cinco vezes maior que a taxa de mortalidade de recém-nascidos dentro do casamento.

Na Casa de Mãe e Bebê em Pelletstown, Dublin, dirigida pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, 119 das 240 crianças abrigadas morreram no ano de 1925. As mortes foram atribuídas a uma epidemia de sarampo. Dois anos depois, das 263 crianças na instituição, 111 morreram. Nenhuma justificativa foi dada por essas mortes. Em dados gerais, entre 1924 e 1930, 662 crianças morreram na instituição, uma média de 94 mortes por ano. Este é, de longe, um dado mais grave que o das mortes acontecidas em Tuam entre 1925 e 1960, uma média anual de 22.

Durante os nove anos, entre 1932 e 1941, também foi registrado um considerável número de mortes de bebês e crianças nas três casas regidas pelas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus e Maria. Em Sean Ross Abbey, em Roscrea, foram 419 mortes, na Sacred Heart, em Bessborough, foram 238 e na Manor House, em Castlepollard, 69 mortes.

Conforme investigação da Comissão de Inquérito sobre Abuso de Criança (CICA), testes de vacinas experimentais podem ter sido a causa de tão alta mortalidade entre as crianças.

Foto: Brian Lockier

Foto: Brian Lockier

“Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso” (Edmund Burke, filósofo irlandês)

Numa sociedade conservadora, fervorosamente católica, onde até recentemente havia escolas separadas para meninos e meninas, é preciso voltar no tempo para entender como uma instituição religiosa foi capaz de ganhar poder a ponto de deliberar sobre a vida das pessoas.

A Grande Fome

O cenário era de dominação inglesa, com o irlandês no papel de trabalhador do campo mal remunerado e o inglês dono de grandes propriedades de terra, cujo lucro da produção era escoado para a Inglaterra.  Restava aos camponeses pequenas porções de terra para plantio de um único produto, que garantiria o sustento de toda a família: a batata. Então veio a praga da batata, a Phytophthora infestans, que arrasou as plantações em larga escala e forçou mais de um milhão de irlandeses a abandonar o país, matando outro milhão de fome. Este episódio, ocorrido entre 1845 e 1849, ficou conhecido como “A Grande Fome”, e foi um marco na história da Irlanda.

A expansão da Igreja Católica

O professor James M. Smith expõe em seu livro “Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Containment”:

“A crescente força da Igreja Católica (…) alcançou novos níveis de autoridade cultural nas décadas pós Grande Fome, assim como o pároco assumiu uma influência dominante na vida social irlandesa. (…) A Igreja Católica começou a definir novos padrões morais e práticas domésticas que por sua vez resultaram em uma nova ênfase sobre o valor da modéstia e da respeitabilidade das mulheres.” “Não significava simplesmente que a Igreja ganhou o controle das mulheres, mas que, por causa de seu isolamento dentro da esfera doméstica, elas, especialmente as mães, foram obrigadas, na sua luta pelo poder, a se render ao controle do sacerdote e aliar-se à Igreja. Para as mulheres, para alcançar e manter o poder moral, era necessário reter sua virtude e castidade. Esta foi a mensagem que as mães começaram a passar para suas filhas. Dentro da diferenciação racional de esferas de responsabilidade moral, a castidade e a modéstia se tornaram objetivos específicos para as mulheres.”

Foto: Brian Lockier

Foto: Brian Lockier

Após o escândalo de Tuam, o arcebispo da cidade, Michael Neary, deu a seguinte declaração: “Fiquei muito chocado, assim como todos nós, ao saber da magnitude do número de crianças enterradas no cemitério em Tuam”. “Eu só posso imaginar o enorme sofrimento das mães em desistir de seus bebês para adoção ou testemunhar a sua morte”, continuou o arcebispo. No entanto, afirma que as Irmãs Bon Secours, que dirigiam a casa, seguiram uma “moral clara e imperativa” no intuito de “agir de acordo com as suas responsabilidades no interesse do bem comum”.

Hoje, as sobreviventes das Lavanderias de Maria Madalena e seus descendentes lutam por retratação e algum tipo de compensação dos principais responsáveis, o Estado e a Igreja Católica. Um regime de compensação está em implementação e, apesar de três pedidos formais por parte do governo irlandês, as quatro ordens religiosas envolvidas até agora se recusam tanto a retratar-se como a participar da compensação proposta pelo governo.

As mães procedentes das Casas de Mãe e Bebê, por sua vez, buscam trazer à luz o que se passava nestes abrigos. Em jogo, estão as mortes de recém-nascidos, testes médicos com vacinas em crianças, adoções forçadas e ilegais.

Em julho deste ano, após o escândalo de Tuam, Charlie Flanagan, recentemente nomeado Ministro da Infância, falou com entusiasmo sobre a necessidade de um inquérito de grande alcance, com um plano de ação a ser anunciado imediatamente. Desde então, Flanagan foi transferido para os Negócios Estrangeiros e houve um atraso no anúncio do plano de ação, coincidindo com o relatório interdepartamental das Casas de Mãe e Bebê. Ativistas apontam para a fraqueza do relatório, juntamente com o atraso no plano de ação, como um sinal de que o Governo pretende limitar o âmbito do inquérito.

Essa é uma história que está só começando a vir à tona.

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aspaMari Steed nasceu na Casa de Mãe e Bebê em Bessborough, Cork, regida pelas irmãs do Sagrado Coração de Jesus e Maria. Ela conta a história de sua mãe, Josephine, que nascida fora do casamento, foi enviada a uma Escola Industrial. Aos 14 anos, assim como outras meninas de mesma idade e situação, foi transferida para a Lavanderia em Bessborough e lá permaneceu por 10 anos. Então obteve a permissão das freiras para trabalhar num hospital em Dublin, administrado por outra congregação, as Irmãs Bon Secours. No hospital, Josephine conheceu o pai de Mari, se apaixonou, ficou grávida e foi devolvida a Cork, onde concebeu Mari, em 1960. Dois anos depois, no momento em que Mari era adotada por um casal de americanos, sua mãe se viu obrigada a voltar à Lavanderia. Elas só se reencontraram quase 40 anos depois.

 

aspa“Desculpas pelo quê?” disse uma freira anônima, de Dublin, com a voz embargada pela emoção. “Pedir desculpas pela prestação de um serviço? Nós fornecemos um serviço gratuito para o país. Todas as ordens envolvidas viram uma necessidade na sociedade e tentaram responder a isso da melhor maneira possível. Havia uma necessidade terrível para muitas dessas mulheres, porque elas estavam na rua, sem assistência social e morrendo de fome. Fornecemos abrigos para elas. Era o “Estado da Não-Providência” (termo usado frequentemente para descrever a Irlanda da época) e nós estamos olhando com os hoje de hoje uma época totalmente diferente.”
(De Claire Mc Cormack, WeNews correspondent, 30/05/2013)

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